Música e sonoridade

Música e sonoridade

O músico que se dedica profundamente à questão da sonoridade e lhe concede um papel importante no contexto da interpretação vê surgir automaticamente problemas referentes aos critérios históricos. Conhecemos aproximadamente a formação vocal e instrumental necessária à música executada na corte papal de Avignon, no século XIV, bem como nas diversas capelas das cortes italianas e alemã da época maximiliana (por volta de 1500); pode-se também ter uma idéia bastante precisa da capela da corte do duque da Baviera, dirigida por Lassus (por volta de 1560), e da sonoridade orquestral e vocal da época de Monteverdi (após 1600), por sinal, bastante documentada não só pelo próprio, como também por Michael Praetorius (1619); pode-se, igualmente, através de estudos análogos, imaginar a sonoridade das óperas do século XVII; a sonoridade orquestral e vocal da época de Bach, por exemplo, é considerada como perfeitamente reconstituível; quanto a Mozart, sabe-se alguma coisa a respeito do mundo sonoro da sua música e também se conhece a sonoridade da orquestra wagneriana. No final desta evolução encontra-se a orquestra sinfônica atual.

Até bem recentemente, a estética musical e a organologia adotavam, face ao conjunto destas complexas questões, um ponto de vista a que a história da arte já havia renunciado hámuito tempo e segundo o qual existiria uma evolução a partir de um estado inicial primitivo, passando por constantes melhoramentos, até chegar a um estado ideal sempre situado no presente. Este ponto de vista não é justificado nem pela estética, nem pelo aspecto técnico ou histórico. Aquilo que é claro já há muito tempo no campo das belas-artes começa agora também a sê-lo nos domínios da história dos sons. É preciso que se entenda de uma vez por todas que o intrumentarium ("a orquestra") de uma época está perfeitamente adaptado à sua música (e inversamente), seja visto na forma do conjunto do intrumentarium da época em questão, seja na de um instrumento isolado. Vejo (e ouço) que quando um intrumento é "admitido" na música clássica, este já alcançou um nível ideal e não se pode mais promover uma melhoria de sentido geral. Se bem que sempre que há uma melhoria de um lado, há um custo a ser pago pelo outro. Esta é uma hipótese que a minha experiência e os meus constantes estudos sobre a matéria têm confirmado e que começa, para mim, a ter o caráter de um fato já comprovado.

A questão que se coloca, no que diz respeito a estas modificações nos intrumentos, outrora apenas vistas como melhoramentos, é a seguinte: estarei disposto a pagar, por esta ou aquela "conquista", um preço que se acha contido na natureza da própria coisa? Como, por exemplo, renunciar às nuanças e sutilezas de timbres para poder ganhar um maior volume sonoro (no caso do piano) ou para adquirir a igualdade perfeita no plano da dinâmica e da afinação dos semitons utilizáveis, abrir mão da afinação específica de cada uma das tonalidades, bem como do timbre de praticamente cada uma das notas (no caso da flauta entre outros). Poder-se citar exemplos desta natureza para praticamente todos os intrumentos. Na maioria das vezes, fascinadas pelos "melhoramentos" alcançados as pessoas não percebem de imediato que, simultaneamente, alguma coisa está sendo sacrificada, e muito menos a que estão renunciando. Atualmente, com um certo distanciamento histórico, tomamos quase todos os "melhoramentos" por mudanças contidas no seio de uma evolução musical.

A conseqüência daí resultante é a de que é preciso executar toda a música com instrumentarium apropriado. Isto traz certamente alguns problemas. Um outro corpo sonoro não significaria para o músico, por princípio, um outro meio de expressão? Será que o ouvinte pode pular de lá para cá entre as diversas sonoridades históricas ou será que ele escolhe, consciente ou inconscientemente, uma determinada sonoridade, uma estética do som? Não estariam estas questões ligadas também a campos secundários da música: à acústica das salas, que contribui de maneira decisiva para a formação do som; ao sistema de afinação, quer dizer, àquilo que será sentido como puro ou impuro com relação à altura da nota? E em que medida uma função expressiva se determina por tais parâmetros? Por fim, resta a pergunta: será que a música, como tal, representa uma linguagem compreensível que transcende as épocas? ("Será que realmente compreendemos Mozart?"). A pergunta não pode de modo algum ser respondida com um sim tão facilmente como se poderia supor. É bem possível que a total revolução que houve em nossa vida cultural nesses últimos cem anos haja alterado de tal modo a execução e a nossa maneira de escutar, que não estamos mais hoje em condições de observar e compreender aquilo que Mozart, por exemplo, com sua música e que era compreendido por seus contemporâneos. Não podemos mais compreender o quanto a música de cem anos atrás era parte integrante da vida pública e privada. Não havia, praticamente, ocasião, fosse esta festiva ou fúnebre, sonele, religiosa ou oficial, em que se não tocasse música. Acredito que, do complexo inteiro de uma obra-prima musical, só compreendemos e percebemos, hoje, uma fatia muito pequena e que várias de suas facetas, provavelmente muito importantes, permaneçam irreconheciveis, pois perdemos as ferramentas que nos eram necessárias. No entanto, esta fatia mínima que nos diz alguma coisa é tão rica, que a aceitamos contentes, sem maiores exigências. Poder-se-ia, então, dizer que, ao perdermos o presente, em troca, recebemos todo o passado, só que não nos apercebemos que, deste, temos apenas um pequeno fragmento, visto através de diminuto ângulo.

É preciso nos perguntarmos se realmente possuímos a totalidade da história da música ocidental. Se assim fosse, a diferença de corpo sonoro e de sonoridade para cada época poderia não ser mais um problema e sim uma ajuda para compreender a diversidade bem maior da música como tal. A alternativa de que se serve a vida musical atual é, sem dúvida, pouco saudável: tanto em se tratando do repertório como da sonoridade. O repertório uniforme que é executado em todo o mundo não é absolutamente a tão citada "escolha da História "! Uma grande parte dele jamais passou pelo julgamento imparcial dos séculos. Este oráculo só começou a se pronunciar no século XIX, completamente marcado então pelo gosto da época . E no que diz respeito à sonoridade, esta escolha muito pobre, que nossos ancestrais fizeram numa época em que ainda dispunham de uma música contemporanea muito viva, no foi proposta com a sonoridade uniforme do século XIX (Bach como Mozart como Brahms como Bartok), sonoridade esta que ridiculamente qualificamos de "moderna", de sonoridade do nosso tempo.

Não podemos mais, como nossos ancestrais, ficar remexendo ingenualmente nos tesouros do passado; precisamos dar um sentido àquilo que fazemos, para não cairmos num pessimismo absoluto. Acreditamos que uma compreensão profunda é perfeitamente possível e que todo caminho que nos leve neste sentido deve ser tomado. Naturalmente, a compreensão e a representação de uma obra musical são extremamente independentes da realização sonora; os primeiros e mais importantes passos para uma interpretação musical sensata são, pois, invisíveis e os menos espetaculares; quando muito, sensacionais, no verdadeiro sentido desta palavra. Visível é o último passo, o trabalho com os intrumentos originais. Este constitui a particularidade mais espetacular, a mais evidente numa interpretação, embora seja muito freqëntemente empregada de maneira inepta, sem as condições preliminares da técnica de execução, mas freqüentemente também sem uma exigência musical imperiosa. Assim, a autenticidade sonora pode constituir, para muitas obras, uma ajuda fundamental, mas em outros casos, justamente por causa de seu caráter espetacular, pode cair num absurdo fetichismo do som.

Fonte: Texto retirado do livro de Nikolaus Harnoncourt - "O Discurso dos Sons